DE COLÔNIA PENAL AO MARCO DE SOBERANIA: BASE MILITAR DE CLEVELÂNDIA DO NORTE E SEUS SEGREDOS

A repressão política em plena floresta serviu também como estratégia de ocupação e presença do Estado no extremo norte do país

Sexta, 22/06/2025, 09:23

“Inferno Verde!” Era assim que era conhecida a localidade onde hoje funciona a Companhia Especial de Fronteira (CEF) do 34º Batalhão de Infantaria de Selva, no município de Oiapoque (AP). Entre os anos de 1924 e 1926, o local abrigou uma colônia penal federal, utilizada pelo governo brasileiro como destino para prisioneiros políticos e criminosos comuns.

“A denominação usada pelos presos políticos da época, em 1924, era ‘prisão sem paredes’, já que se tratava de uma colônia penal situada em uma região inóspita, cercada pela selva amazônica primária. Segundo relatos de quem viveu ali naquele período, o local era chamado de ‘Inferno Verde’ porque não havia grades, mas também não havia como fugir. Naquele tempo, a cidade de Oiapoque ainda não existia — apenas esta região onde estamos hoje. Era uma área isolada, cujo único acesso era por embarcações, geralmente vindas de Macapá”, explicou o major Marton, comandante da Companhia militar.

Instalada no então “Núcleo Colonial Cleveland”, fundado em 1922 como colônia agrícola, a unidade penal recebeu entre 946 e 1.630 detentos. Entre os presos estavam revoltosos tenentistas, militantes operários, anarquistas e pessoas enquadradas como criminosos comuns — incluindo menores de idade, capoeiristas e indigentes. Os detentos vieram de diversos estados, como Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas e Pará.

No relatório “Viagem ao núcleo colonial Cleveland”, o pesquisador Paulo Sérgio Pinheiro registrou que, entre 1924 e 1926, 946 pessoas consideradas “impróprias” foram enviadas para a colônia penal de Clevelândia. Desse total, 491 morreram no local. Pelo menos 200 conseguiram fugir pela Guiana Francesa, de onde se comunicaram com familiares, amigos ou integrantes de movimentos políticos.

O anarquista Domingos Passos também relatou suas experiências em um artigo publicado no jornal paulista A Plebe, ainda utilizando a grafia do português da época.

Parte dos ex-detentos permaneceu na região após a desativação da prisão e formou famílias que hoje integram a população local. A vila de Martinica, que recebeu muitos dos colonos, foi rebatizada como Oiapoque e tornou-se sede do município em 1945. O Núcleo Colonial Cleveland foi oficialmente extinto em 1936. Em 1940, a área foi transferida para o Ministério da Guerra e transformada em colônia militar.

A colônia funcionava na margem direita do rio Oiapoque, a cerca de 15 km do posto militar de Santo Antônio, próximo à atual vila de Oiapoque. Do outro lado do rio ficava Saint Georges, território francês da Guiana Francesa. Na época, a área ainda fazia parte do estado do Pará e era considerada estratégica pelo governo federal, que buscava assegurar a soberania brasileira em uma região próxima à fronteira com a França, como é visto até hoje.

A ocupação da região foi impulsionada por um projeto do senador paraense Justo Chermont, aprovado em 1919, que previa a criação de patronatos e colônias nacionais ao longo do rio Oiapoque. O objetivo era evitar a atuação de contrabandistas e reduzir a influência francesa no território.

Nesse contexto, a moradora mais antiga da região, Raimunda da Cruz Pantoja — conhecida popularmente como Dona Marta — , de 103 anos, chegou ao local vinda de Fortaleza, no Ceará. Devido à idade avançada, a moradora, que vive em uma residência simples, não se lembra de muitos detalhes, mas recorda que trabalhou com os militares, principalmente lavando roupas, mas não soube dizer com exatidão quando chegou ao local.

"Quando cheguei aqui, não tinha nada, isso aí era só ‘capoeira’, casinhas pequenas e humildes. Na época, morava pouca gente, só alguns vizinhos aqui por perto, em umas ‘palhocinhas’, coitados.”.

“Varei no encontro dessas águas. Quando cheguei aqui, não tinha nada, isso aí era só ‘capoeira’, casinhas pequenas e humildes. Na época, morava pouca gente, só alguns vizinhos aqui por perto, em umas ‘palhocinhas’, coitados. Mas era tudo muito animado: campos, festas, tudo. Antes de chegar aqui, passei por Almeirim, Jari, Paru, Santarém, Monte Alegre… e vim parar aqui. Muita coisa já esqueci.”

Além de lavadeira, dona Marta também atuava como vendedora e faxineira nas instalações da companhia militar: “Vendia muita galinha por aqui. Vendia, dava… dava galinha, dava ovo. Eu penso que todo mundo quer viver, comendo, bebendo, e só isso é o que levamos da vida. Lavei muita roupa: para o hospital, para o alojamento, para o hotel, para o rancho (refeitório). Trabalhei muito tempo como faxineira nesse rancho. Trabalhava eu e uma senhora lá do Oiapoque, a dona Ofélia. Naquele tempo não tinha esse negócio de lavadora, era tudo na mão, porque até tinha energia elétrica, mas era bem pouca…”

Mãe de três filhos, dona Marta viu todos falecerem. “Enterrei meus três filhos, não tive muita sorte”, lamentou. Atualmente, ela recebe apoio do Exército Brasileiro, com alimentação e serviços de manutenção em sua residência, que está passando por reforma.

O distrito de Clevelândia do Norte, que recebeu esse nome em homenagem ao então presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland, que atuou como árbitro na disputa de fronteira entre Brasil e França pela região do rio Oiapoque, tem outras curiosidades interessantes, entre elas, uma que faz mais de 2 milhões de paraenses irem às ruas em todo primeiro domingo do mês de outubro, quando é celebrado o Círio de Nazaré.

Símbolo da fé paraense em terras amapaenses

Um dos principais símbolos da festa religiosa paraense está localizado em um ponto central do distrito, em frente ao antigo porto de Clevelândia — que, com o tempo, foi destruído pelas fortes correntezas do rio Oiapoque. Trata-se de uma réplica da Basílica Santuário de Nazaré, que serve como cartão de visita para quem circula pela vila militar e aproveita para tirar aquela foto de recordação.

A réplica foi construída em 1953, durante o processo de consolidação da presença brasileira na região de fronteira com a Guiana Francesa. A obra teve como motivação o desejo de reafirmar a identidade cultural e religiosa local, simbolizando a importância da fé católica como elemento de coesão social em uma área estratégica e de difícil acesso naquele período.

De acordo com militares da Companhia, uma das principais versões é a de que um oficial paraense, natural de Belém, devoto de Nossa Senhora, solicitou a construção da pequena réplica.

Rico acervo histórico e cultural

Como resultado de pesquisas realizadas por diversos militares em documentos históricos de Clevelândia do Norte, a pedido do então comandante da Companhia, coronel Jorge Alberto, foi inaugurado, em 2023, um acervo que narra a história do local — desde a criação da base e da colônia, até os povos indígenas que habitam as redondezas — além de reunir materiais e peças históricas encontrados na região.

“Conseguimos reunir algumas peças históricas, como a réplica da espada do marechal Rondon e a metralhadora da aeronave americana B-23, que caiu aqui durante a Segunda Guerra Mundial. Foi uma iniciativa do nosso comandante na época, o coronel Jorge Alberto, então à frente do batalhão. Ele teve a ideia, colocou em prática e hoje temos esse resultado aqui”, contou Major Marton.

A Metralhadora Norte-Americana

Durante a Segunda Guerra Mundial, uma aeronave modelo B-26G da Força Aérea dos Estados Unidos (USAAF), com o prefixo 44-68105, caiu em uma área remota próxima ao município de Oiapoque, no Amapá, enquanto realizava um voo de translado com destino à Europa. Todos os cinco tripulantes morreram na queda. O avião pertencia ao 387º Grupo de Bombardeio e era conhecido pelo apelido “Fazedor de Viúvas”, em razão da elevada taxa de acidentes nos primeiros anos de operação.

O ponto da queda foi identificado inicialmente por indígenas da região em 1946 e voltou a ser localizado por militares do Exército Brasileiro somente em 2022. Na ocasião, já não havia restos mortais no local — os corpos dos militares americanos haviam sido resgatados pouco após o acidente e foram sepultados nos Estados Unidos.
Entre os destroços, foi encontrada uma metralhadora que integrava o equipamento da aeronave durante o conflito. Restaurada e preservada, a peça hoje integra o acervo histórico da Companhia Especial de Fronteira (CEF), em Clevelândia do Norte.
Além dela, uma réplica da espada do histórico marechal Cândido Rondon, histórico explorador da Bacia Amazônica Ocidental e conhecido por seu apoio vitalício às populações indígenas brasileiras.

História como inspiração para o ingresso de novos militares

Toda essa herança histórica e a forte presença do Exército na região influenciaram moradores locais a ingressarem na carreira militar, como o cabo Vidal, da etnia Palikur. Esse povo indígena vive em ambos os lados da fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa, na bacia do rio Uaçá, afluente do baixo rio Oiapoque. Considerados os mais antigos habitantes indígenas da área, os Palikur descendem das populações Arawak, que, segundo dados arqueológicos e históricos, ocupavam amplamente a região antes da chegada dos europeus. Atualmente, são os únicos representantes desse grupo originário ainda presentes na região. O trajeto até lá, a partir da sede do município, leva cerca de 4 a 5 horas por via fluvial.

“Eu nasci na aldeia Kumenê, mas vim para o Oiapoque para estudar. Às vezes, a gente ficava esperando o Exército passar, horas e horas ali, só esperando. E aí, em uma dessas ocasiões, bateu essa vontade: ‘Poxa, eu preciso estar ali no meio, preciso fazer parte disso’. Além de mim, meu irmão também é cabo do Exército”, contou Vidal.

“Minha principal função aqui é a de corneteiro. Às 6 da manhã, faço a alvorada e, às 8h, realizo o hasteamento da bandeira, todos os dias. Depois, sigo com as demais atividades, como o nosso treino físico militar. Em seguida, vou para a minha área auxiliar o meu comandante”, completou.

gustavo

Gustavo Dutra

Coordenação Sênior

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Ronald Sales

Coordenação Executiva

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