Tecnologia ancestral:
o elo entre militares e indígenas na defesa
da Amazônia
Saberes tradicionais e tecnologia se unem na defesa da floresta em uma das regiões mais remotas do país.
Segunda, 11/08/2025, 09:23
Em uma área isolada no extremo norte do Pará, no município de Óbidos, está localizado o 1º Pelotão Especial de Fronteira de Tiriós (1° PEF Tiriós). O nome, de origem indígena, homenageia a comunidade mais próxima da instalação militar: a Terra Indígena Tiriyó, situada entre o Brasil e o Suriname, em uma região conhecida como Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque — a maior área de floresta tropical contínua preservada do mundo.
No local, desde 1984, 54 militares, entre oficiais e praças, realizam ações de proteção de fronteira, apoio às comunidades tradicionais da região, combate a atividades ilegais (como garimpo ilegal e outros crimes transfronteiriços) e garantem a soberania nacional, além de realizarem treinamentos de campo. Embora Tiriós esteja localizada no Pará, está mais próxima, geograficamente, do Amapá, a cerca de 600 km de Macapá, onde fica a sede da 22ª Brigada de Infantaria de Selva. Toda essa região da Amazônia Oriental é de responsabilidade do Comando Militar do Norte, que abrange os estados do Pará, Amapá, Maranhão e a porção norte do Tocantins.
No extremo norte do Pará, no município de Óbidos, está localizado o 1º Pelotão Especial de Fronteira de Tiriós (1° PEF Tiriós).
Considerada uma das unidades mais remotas e inóspitas do Exército Brasileiro, a instalação só pode ser acessada por via aérea, seja por helicóptero ou avião. Os militares permanecem no local por períodos de quatro meses, sendo substituídos ao fim de cada ciclo.
A base conta com estrutura completa para garantir segurança e abastecimento aos seus ocupantes. Entre os recursos disponíveis, há uma usina fotovoltaica que fornece energia elétrica, além de viaturas, embarcações, poço artesiano, galinheiro, horta e um gerador. E a cada dois meses o local é abastecido com suprimentos, vindos predominantemente de Macapá e Manaus.
Lá, há uma relação histórica — em grande parte pela proximidade — entre indígenas e militares. E não se trata de uma relação unilateral: o Estado e as comunidades tradicionais se comunicam e colaboram entre si. De um lado, os povos indígenas oferecem o conhecimento profundo da região, adquirido ao longo de gerações. Do outro, os militares dispõem de ferramentas e estratégias necessárias para a proteção da fronteira.
É assim que a interação entre esses dois entes — também chamados de “sensores” — se torna algo mais que especial: trata-se de uma relação de inteligência. Não aquela baseada em escritórios sofisticados de criptografia ou cercada de computadores, mas sim uma inteligência construída a partir da união entre os saberes tradicionais e as técnicas militares, ambas alinhadas às tecnologias disponíveis no momento atual da humanidade. A população Tiriyó no Parque é estimada em aproximadamente 1.550 pessoas, distribuídas em cerca de 30 aldeias, se considerar indígenas de outras etnias, esse número salta para mais de 2500 habitantes.
Pessoas
Aldeias
PEF TIRIÓS
Nós, militares indígenas, atuamos como ponte nessa comunicação. A gente faz a tradução da língua indígena para o português. Às vezes, um parente não consegue se comunicar com um médico, por exemplo, e a gente ajuda com essa tradução”, explicou Yan Tiriyó, cabo indígna do Exército.

Com forte influência do tio, Yan ingressou nas Forças Armadas há quatro anos. Desde cedo, por conviver com militares, sempre esteve familiarizado com as práticas e desafios da vida na caserna. Conhecedor da região onde atua, a carreira no Exército Brasileiro surgiu como um caminho natural em sua trajetória.
“Minha inspiração foi meu tio. Ele era militar e já frequentava o pelotão. A partir dele, comecei a me interessar também. Hoje, estou servindo no 1º PEF”, disse. “Além de mim, tenho um primo e mais dois outros primos que seguiram o mesmo caminho”, completou.
A presença de Yan no pelotão representa também a complexidade e diversidade cultural dos povos indígenas da região. Embora chamados de “Tiriyó” no contato com não-indígenas, em sua própria língua eles se identificam como Tarëno, expressão que significa “os daqui”, referindo-se aos povos originários da região entre o norte do Pará e o sul do Suriname. O nome Tiriyó, segundo eles próprios relatam, foi atribuído pelos brancos e adotado em contextos interétnicos — especialmente a partir da presença de missionários e militares nas décadas de 1950 e 1960.

O primeiro contato entre indígenas e militares na região ocorreu por meio de uma figura amplamente reconhecida nas Forças Armadas: o marechal Cândido Rondon. Responsável por explorar a Amazônia e expandir as linhas telegráficas, Rondon manteve contato com diversos povos indígenas, incluindo os Tiriyó. Na época, por volta da década de 1920, seu objetivo era construir linhas de comunicação e inspecionar as fronteiras do país, o que o levou a interagir diretamente com as comunidades indígenas ao longo de seu trajeto. A partir desse contato inicial, a convivência entre militares e povos originários passou por transformações, consolidando-se como uma relação de parceria e colaboração mútua.


Hoje em dia, as aldeias, assim como a base militar, contam com a estrutura necessária para a troca de informações de inteligência. Rádios, internet via Starlink, usinas fotovoltaicas e celulares contribuem diretamente para a comunicação das lideranças indígenas com uma das únicas instituições presentes na região: as Forças Armadas.
De acordo com o comandante da Companhia de Fronteira Amapá e do 34º Batalhão de Infantaria de Selva (CFAp/34º BIS), coronel William Miranda, a relação com os indígenas é de longa data e se baseia em uma parceria eficaz, na qual os povos originários atuam como sensores, contribuindo para a preservação das áreas de fronteira.
“Os indígenas são nossos principais sensores nas comunidades e aldeias. Informam de imediato — a qualquer hora — os problemas que estão enfrentando. Nosso sistema de troca de informações é altamente eficaz: as mensagens chegam com muito mais rapidez do que se imagina. Tudo isso se baseia em dados de inteligência, nos quais os indígenas desempenham um papel fundamental. Hoje, muitas comunidades contam com painéis solares, acesso à internet via Starlink e uso de celulares. Além disso, a comunicação também ocorre por meio de rádio, utilizando a fonia para alertar os militares sobre eventuais problemas que surgem na região”, explicou.
De acordo com o comandante, a prova de que os povos indígenas veem as Forças Armadas de forma positiva é o fato de oferecerem, inclusive, mão de obra: os militares indígenas que atuam na região e são essenciais no processo de comunicação.
“Da mesma forma que damos suporte a eles, recebemos esse apoio na mesma medida. Para vocês terem uma ideia, eles nos fornecem até mesmo os militares indígenas, que vêm diretamente das aldeias. Ou seja, entregam o bem mais precioso que possuem: o material humano. E a instituição militar forma esses cidadãos para que se tornem combatentes, preparados para enfrentar as ameaças que surgirem”, explicou. “Eu falo com tranquilidade: os indígenas têm totais condições de ser a base de qualquer operação na região. Se eles informarem que há algum problema em determinado local, no mínimo, nós vamos organizar uma operação para resolver a situação”, concluiu.

Tiriyó
Kaxuiana
Karipuna
Palikur
Galibir
No total, a 22ª Brigada conta, na área, com 35 militares indígenas das etnias Tiriyó, Kaxuyana, Karipuna, Palikur e Galibi.
Um pacto de escuta e defesa
Num tempo em que a Amazônia é palco de disputas geopolíticas, exploração predatória e invisibilização de povos originários, a história do 1º PEF Tiriyós revela uma outra narrativa. Uma que fala de soberania com respeito, de presença com cooperação, de defesa com aliança.
Em um ponto do mapa onde o acesso é difícil e o sinal de celular é raro, são os saberes tradicionais que guiam os passos dos que protegem a floresta. Ali, soberania não se escreve apenas com armas ou decretos — mas com confiança, troca e memória.
A conservação da terra para as futuras gerações é levada muito a sério na Aldeia Indígena Missão Nova, liderada pelo cacique Tito Tiriyó e distante cerca de 4 km da instalação militar. Segundo ele, a parceria com o Exército Brasileiro é fundamental para preservar os recursos naturais por mais tempo. A escuta mútua e a troca constante de informações são essenciais nesse processo.
“Nós estamos preservando a nossa floresta não só por nós, mas pelas crianças e pelas futuras gerações. É dela que tiramos o alimento, a caça, o peixe do rio. Por isso, é fundamental manter a floresta em pé, para que os que vierem depois também possam usufruir e proteger esses recursos. Quando a floresta está preservada, sentimos um ar diferente, vivenciamos eventos naturais e tantos outros aspectos que precisam ser valorizados. Nossa roça e nossa plantação também vêm do mato, então tudo está conectado. E é por isso que o apoio do Exército na proteção da floresta é muito importante”, afirmou o cacique Tito Tiriyó. “Com o Exército, nos sentimos mais protegidos. Estamos sempre juntos, a comunidade é engajada e apoia o trabalho dos militares, assim como de outras instituições, como a Funai, que também atua na nossa proteção”, completa.
Para compreender a entrevista, contamos com o apoio do soldado Amos Apalai, que vive na aldeia e atua como intérprete. Assim como Yan Tiriyó, ele é um elo entre a instituição militar e a comunidade indígena.
“Ser tradutor é um pouco difícil para nós, porque algumas palavras não têm uma tradução exata para o português — outras são apenas aproximadas. O importante de atuar como intérprete é ajudar quem tem dificuldades. A gente se esforça para conseguir se comunicar e eu me dedico para traduzir as nossas necessidades da melhor forma possível”, explicou.

Mesmo com as dificuldades na comunicação, os povos indígenas da região se esforçam para manter um contato cada vez mais próximo com as Forças Armadas — uma relação que fortalece o trabalho militar e contribui diretamente para a proteção da vida na floresta.

Lucas Contente
Reportagem

Emerson Coe
Multimídia
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